Santo Arquiteto ou Arquiteto Santo

Categoria: Teoria Imprimir Email

 

EDITE GALOTE CARRANZA

 

Um dos principais compromissos do Papa Bento XVI, em sua visita ao Brasil, em maio deste ano, será a canonização de Frei Galvão "o arquiteto".

Fig. 2 Mosteiro da Luz, 1867.  Fonte: Arquivo Iconográfico municipal Fig. 2 Mosteiro da Luz, 1867. Fonte: Arquivo Iconográfico municipal

  

 Fig.3 - Planta do Museu de Arte SacraFig.3 - Planta do Museu de Arte Sacra

Nascido em Guaratinguetá, estado de São Paulo, Antônio de Sant´Anna Galvão (1739-1822), será o primeiro brasileiro declarado santo pelo Vaticano.

  

Um detalhe da biografia do religioso, que muitas pessoas desconhecem, é o fato dele ter sido o “arquiteto” responsável pelo projeto e a construção do Mosteiro da Luz, um dos poucos remanescentes da arquitetura colonial paulista.

Talvez a longevidade do Mosteiro, que sobreviveu a construção e reconstrução da cidade de São Paulo, seja mais um milagre a ser atribuido ao Santo.

O Mosteiro da Luz

Em fins do século XVI, Domingos Luiz “o carvoeiro” ao se mudar para o Campo do Guaré, local onde passava o riacho Guararepe, edificou uma capela onde abrigou a imagem de sua padroeira Nossa Senhora da Luz.

Os primeiros franciscanos que chegaram às terras paulistas, por volta de 1583, abrigavam-se na capela da Luz. Por essa época vinham a se estabelecer no local as freiras concepcionistas.

Em 1773, o governador Dom Luis Antonio de Souza Botelho Mourão, morgado de Mateus, encaminhou a Câmara ofício manifestando sua intenção em estabelecer naquela área, o recolhimento de mulheres devotas à Divina providência.

Em 2 de fevereiro de 1774 foi fundado o recolhimento da das freiras concepcionistas da Ordem da Imaculada Conceição, quando foi nomeado Frei Galvão para sua direção espiritural. A área do recolhimento compreendia terras desde a atual Av. Tiradentes até o rio Tamanduateí, incluindo a área ocupada pela antiga capela e o terreno que pertence, hoje, ao Quartel do Batalhão Nove de Julho.

No início, o Mosteiro passou por grandes privações, conforme relata o próprio Frei Galvão : 
“As celas muito pequenas, sem soalho e sem forro e ainda poucas. Havia irmãs que moravam em celas feitas com taquaras e esteiras e todas muito contentes. Nossas camas, todas no chão, consistiam em esteiras sem forro, de pau por travesseiro e um cobertor. Algumas muito doentes tinham o travesseiro de barba de pau. Os corredores sem luz e tão estreitos que com dificuldade deixavam passar duas pessoas juntas. Vivíamos só com as esmolas dos fiéis. As coisas compradas com dinheiro davam só para as irmãs doentes.”

Desde que assumiu a direção do recolhimento, Frei Galvão se comprometeu em erguer um novo edifício digno de estabelecer a Ordem Religiosa. Como ele havia testemunhado a realização de muitas obras no convento do Largo São Francisco, projetou um edifício amplo, com celas de clausura, claustro central para meditação, de pendências de serviço, refeitório, enfermaria, e uma igreja de nave octogonal e duas torres sineiras. O risco da fachada está grafado numa das paredes da cela que Frei Galvão ocupou no Mosteiro.

Frei Galvão inaugurou o mosteiro em 1788. Após sua morte, em 1822, assume a direção das obras Frei Lucas José da Purificação. Frei Lucas simplificou o projeto inicial do Mosteiro e concluiu a igreja com uma única torre sineira central e acesso através de galilé, em arcadas, solução similar a adotada para o Convento de São Francisco, no centro da cidade.

 

Fig. 4  Mosteiro da Luz. Foto de Militão em 1868Fig. 4 Mosteiro da Luz. Foto de Militão em 1868

A técnica construtiva

A técnica construtiva empregada na construção do Mosteiro foi a taipa-de-pilão, largamente empregada nas construções da cidade de São Paulo naquela época. Ela consiste em socar terra levemente umedecida entre pranchões de madeira denominados taipais. A camada de terra, de aproximadamente 15cm de espessura, é socada utilizando-se pilão ou com os pés, até compactar-se a 2/3 ou 1/2 do seu volume inicial. Cada camada deve se desenvolver por toda a extensão periférica da construção, e depois de concluída, os taipais são elevados para dar seqüência a uma nova camada. Durante a operação de enchimento e apiloamento, os taipais eram fixos por meio de peças de madeiras dispostas no sentido transversal. Após a conclusão da taipa, as peças transversais são retiradas dando origem a orifícios conhecidos como cabodás.

A escolha da terra a ser usada é de fundamental importância para o bom resultado desta técnica. O ideal é que ela contenha uma certa porcentagem de pedrisco miúdo e areia. Mas, na ausência de uma terra ideal, os construtores adicionavam capim, pedrisco, crina de animal e até mesmo sangue de boi, este último como aglutinante.

Um recurso utilizado para aumentar a resistência da taipa era a colocação de peças de madeira, no sentido longitudinal, em intervalos regulares de 60 a 100cm, criando uma espécie de “parede de terra armada”.

A taipa-de-pilão apresenta bons resultados, porém é altamente erodível na presença de unidade. Assim, a técnica necessita de telhados com largos beirais para proteção contra ação de águas pluviais.

Certamente os dois franciscanos conheciam bem a técnica da taipa-de-pilão, prova disso é a longevidade e qualidade da construção.

O Mosteiro da Luz possui dois pavimentos e belos interiores. Tanto as portas quanto as janelas são de madeira maciça natural e se encaixam às paredes de 1,00m de espessura. As tábuas do assoalho de madeira ipê medem cerca de 0,50m de largura e são pregadas com cravos de 10cm de comprimento. As janelas voltadas para o jardim ensolarado, tanto do térreo quanto do superior, são do tipo “conversadeiras”, como bancos que aproveitam a largura dos peitoris.

No início do século xx, o Mosteiro foi ampliado pela generosidade do Conde Prates, trabalho executado com critério que não desfigurou o conjunto inicial.

Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1943, e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), em 1979, o Mosteiro é uma preciosidade da Cidade de São Paulo.

 

Fig. 5 - Taipal. Redesenho G&CFig. 5 - Taipal. Redesenho G&C

Fig. 6 - Parede de taipa em corte. Redesenho G&CFig. 6 - Parede de taipa em corte. Redesenho G&C

Fig. 7 - Detalhe de parede de taipa e telhado. Redesenho G&CFig. 7 - Detalhe de parede de taipa e telhado. Redesenho G&C

 

 

O Museu de Arte Sacra de São Paulo

Em 29 de julho de 1970, a ala esquerda térrea do Mosteiro da Luz foi destinada a abrigar o Museu de Arte Sacra de São Paulo, a partir de um convênio entre a Mitra Arquidiocesana, proprietária do acervo e o governo do Estado de São Paulo.

Entre 1979 e 1980 a edificação foi restaurada pelos arquitetos Carlos Lemos e Vera Maria Ferraz de Barros, do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arquitetônico do Estado de São Paulo - Condephaat.

Fig. 8 - Fachada frontal, 1999. Foto: Edite Galote CarranzaFig. 8 - Fachada frontal, 1999. Foto: Edite Galote Carranza

As obras de restauro respeitaram ao máximo o aspecto original da edificação. As principais modificações foram: mudança de cor das janelas que passaram do azul para o verde escuro; pintura das fachadas na cor branca; troca de grades modernas, situadas em algumas janelas fronteiras, por outras copiadas dos originais que se encontravam no fundo do prédio; a reforma do jardim com a remoção de algumas árvores de origem europeia que não existiam na época da construção do Mosteiro; novas instalações elétrica e de segurança compatíveis com as necessidades do acervo. Uma das etapas mais difíceis do restauro foi o telhado, que havia deslizado devido às vibrações do metro. As telhas foram amarradas com fio de cobre uma a uma.

Fig. 9 - Museu de Arte Sacra, 1999. Foto: Edite Galote CarranzaFig. 9 - Museu de Arte Sacra, 1999. Foto: Edite Galote Carranza

O acervo do Museu é variadíssimo e acompanha toda a cronologia da arte paulista, com peças que datam do século XVI aos nossos dias. A maioria das peças provém, principalmente, de antigas capelas e igrejas de São Paulo mas há, também, peças de outros estados. Uma coleção preciosa com cerca de 4000 peças de vários artistas entre anônimos e renomados como Antonio Francisco Lisboa, o “Aleijadinho” ( 1730-1814 ), Frei Agostinho da Piedade ( 1580-1661 ), Frei Agostinho de Jesus ( 1600-1661 ), Manuel da Costa Athayde ( 1762-1830 ), Padre Jesuíno do Monte Carmelo ( 1764-1819 ).

Com a canonização do Frei Galvão, é provável que o local, além de Mosteiro e Museu, assuma mais uma função e torne-se o principal local de devoção ao Santo.

Bibliografia

Livros:

GODINHO, Antonio de Oliveira, Padre. O museu de arte sacra de São Paulo. São Paulo: Editor Pde.Antonio de Oliveira godinho Banco Safra, 1983.

KATINSKY, Julio Roberto. Casas Bandeiristas: Nascimento e econhecimento da arte em São Paulo. São Paulo: Instituto de Geografia, USP, 1976.

LEMOS, Carlos A.C. Arquitetura brasileira.São Paulo: Melhoramentos/Edusp. 1979.

REIS FILHO, Nestor Goulard. Evolução urbana do Brasil (1500-1720). São Paulo: Pioneira, Universidade de São Paulo, 1968.

SAIA, Luis. Morada Paulista. 2ed. São Paulo:Perspectiva, 1978.

SANCHES, Carolina. Frei Galvão:a vida,os milagres e as pílulas milagrosas do primeiro santo brasileiro São Paulo: Publifolha, 2007.

TOLEDO, Benedito L. de. São Paulo: três cidades em um século.2.ed.aum.São Paulo: Duas cidades, 1983.

VASCONCELOS, Sylvio de Carvalho. Arquitetura no Brasil: sistems construtivos, 4ed. : Belo Horizonte: Escola de Arquitetura, 1961.

Artigos de jornal:

LEMOS, Carlos A.C. O museu de Arte Sacra de São Paulo, Folha de São Paulo, São Paulo, 3 jun 1997.

A organização científica da casa de arte paulista. O Estado de São Paulo, 17 mai 1981.

CUNHA, Maria Carneiro da. Folha de São Paulo, 14 fev. 1980.

As reformas dinamizam o Museu de Arte Sacra de São Paulo, Folha de São Paulo, suplemento turístico, 20 mar. 1981.

Fotografias:

Arquivo iconográfico do Município de São Paulo

Edite G.R.Carranza

Desenhos: G&C Arquitectônica Ltda

    Edite Galote Carranza
    é mestre pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie em 2004; doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 2013 com a tese “Arquitetura Alternativa: 1956-1979”; diretora do escritório de arquitetura e editora G&C Arquitectônica e da revista eletrônica 5% arquitetura + arte ISSN 1808-1142. Publicações em revistas especializadas, livros Escalas de Representação em Arquitetura, Detalhes Construtivos de Arquitetura e O quartinho invisível: escovando a história da arquitetura paulista a contrapelo. Professora da graduação e pós-graduação da Universidade São Judas Tadeu.
    Acessos: 3394